Processo químico faz peptídeo adquirir estrutura similar à encontrada em doenças neurodegenerativas

Luciana Constantino | Agência FAPESP – Os peptídeos são biomoléculas formadas pela ligação entre dois ou mais aminoácidos que apresentam importantes funções no organismo humano, como as de hormônios, neurotransmissores, analgésicos e até antibióticos. Por esse motivo são muito estudados e usados pela indústria farmacêutica, por exemplo.

Em uma pesquisa desenvolvida por cientistas do Departamento de Biofísica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) foram identificadas mudanças significativas em propriedades físico-químicas de peptídeos durante um processo espontâneo de modificação química chamado piroglutaminação, que chega a alterar suas características.

A piroglutaminação é uma transformação bastante conhecida, porém, frequentemente negligenciada na síntese de peptídeos e pouco explorada na proteômica. O alerta revelado na pesquisa é que essa transformação pode ocorrer rapidamente, ainda dentro dos prazos experimentais típicos, e é especialmente relevante em condições que mimetizam ambientes fisiológicos, como em temperatura próxima a 37° C, semelhante à do organismo humano.

A descoberta do grupo brasileiro, além de ter implicações para pesquisas laboratoriais, também abre uma nova perspectiva voltada a estudos sobre doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson. Isso porque, após a modificação química, a molécula adquire estruturação amiloidal (que favorece a agregação das moléculas, formando placas), como as existentes em portadores dessas doenças.

Pela inovação e importância, o estudo foi destaque na capa da revista científica Biochemistry. Recebeu apoio da FAPESP por meio de dois projetos (21/04885-3 e 22/03056-6).

O grupo examinou in vitro o mecanismo de transformação do aminoácido glutamina (Gln) em seu derivado cíclico piroglutâmico (Pyr), quando presente uma sequência peptídica ou proteica na extremidade N-terminal (uma das pontas da molécula). Esse processo ocorre via deamidação, isto é, a eliminação de um composto químico, o NH3 (amônia). Todas as proteínas são constituídas por 20 tipos de aminoácidos, unidos por ligações peptídicas – o que varia é o número e a sequência dos aminoácidos.

“O resultado pode servir de modelo para muitos pesquisadores que trabalham com peptídeos. Conseguimos dois achados. Voltamos a um tema antigo, que é a degradação da glutamina em piroglutâmico, mas alertamos para a importância da análise da sequência. E a segunda questão foi destacar que, após a transformação do peptídeo, as características mudam, com tendência de ele se atracar a membranas. Com o piroglutâmico, a molécula passa a ter a propriedade de formar agregados amiloides, como se fossem conglomerados típicos encontrados em pacientes com doenças neurodegenerativas. Essas placas amiloidais se depositam no cérebro e interrompem o fluxo de neurônios”, explica o professor do Departamento de Biofísica Clovis Ryuichi Nakaie, orientador do estudo.

Degraus da pesquisa

A sequência peptídica-modelo (QHALTSV-NH2) usada no trabalho surgiu no doutorado da química Mariana Machado Leiva Ferreira, primeira autora do artigo. Ela buscava a síntese de cerca de duas dezenas de peptídeos presentes na sequência de cinco tipos de receptores GPCR (receptores acoplados à proteína G, na sigla em inglês, que captam sinais extracelulares e ativam vias de sinalização no interior da célula), de tamanhos variados (até cerca de 20 aminoácidos). Entre todos esses peptídeos sintetizados, apenas um se destacou pelo baixo rendimento obtido, sendo o único com a glutamina na extremidade amínica.

“Após a primeira tentativa de síntese com rendimento muito baixo, variamos diferentes parâmetros necessários para o aumento do resultado da produção desse peptídeo, incluindo alterações tanto na parte sintética quanto na de purificação, mas, infelizmente, sempre percebemos a degradação de parte dele”, conta Ferreira.

Ao testar soluções comuns do campo de experimentos proteômicos, o grupo notou que em todas elas ocorria a conversão da glutamina para seu derivado cíclico piroglutâmico em função do tempo, seguindo uma cinética típica de primeira ordem, ou seja, a velocidade de transformação acompanhava a reação.

Por isso, optou-se por introduzir uma estratégia sem agitação da solução, sendo possível, assim, inferir que a velocidade de conversão precisa ser considerada. Estima-se, por exemplo, que após cerca de cinco horas do experimento há chances de que pelo menos 10% da glutamina tenha se transformado em piroglutâmico.

A pequena alteração estrutural que ocorre quando o peptídeo nativo é piroglutamizado em sua extremidade N-terminal é suficiente para alterar o comportamento físico-químico da molécula.

“Por ser cíclico e com uma carga positiva a menos, o Pyr-peptídeo seria mais hidrofóbico que o nativo e, assim, antevíamos maior chance de interação do análogo com sistemas membrana-miméticos. O que não esperávamos era que esse análogo mostrasse a formação de estruturas amiloidais, do tipo existentes em portadores de doenças neurodegenerativas. Não chegamos a estudar a doença, mas é um caminho que se abre”, afirma à Agência FAPESP o também professor do departamento Emerson Rodrigo da Silva.

Silva é autor correspondente do artigo, juntamente com Nakaie, que ressalta a importância das modificações pós-translacionais que ocorrem no organismo e envolvem a cadeia polipeptídica. Essas modificações desempenham papel na diversidade funcional das proteínas e permitem que uma sequência de aminoácidos codificada em um gene seja adaptada para várias funções e regulações.

“Dentro desse contexto, certamente o fator tempo estará, no fundo, sempre conjugado com a ocorrência das modificações, independentemente do local ou da velocidade de cada uma delas em nosso organismo. Portanto, o conceito do relógio da vida adquire sentido e foi por essa razão que propusemos a ampulheta com a transformação espontânea de Gln em Pyr como ilustração para a capa da revista”, diz Nakaie.

Professor na Escola Paulista de Medicina há 45 anos, ele destaca o pioneirismo do Departamento de Biofísica ao introduzir no Brasil o desenvolvimento de projetos na área de síntese e bioquímica de peptídeos, incluindo derivados de aminoácidos.

“Com certeza, nossos achados abrem caminhos para outros estudos. Depois da conclusão do trabalho envolvido no doutorado da Mariana, também queremos dar seguimento a essa linha de pesquisa”, conclui Nakaie.

O artigo Pyroglutamination-Induced Changes in the Physicochemical Features of a CXCR4 Chemokine Peptide: Kinetic and Structural Analysis pode ser lido em: https://pubs.acs.org/doi/10.1021/acs.biochem.3c00124.