Infecções por Candida ainda têm alta taxa de mortalidade no Brasil, apesar de avanço terapêutico

Ricardo Muniz | Agência FAPESP – Artigo publicado no Journal of Fungi analisou a infecção por fungos do gênero Candida na corrente sanguínea, comparando dados entre 2010/2011 e 2017/2018 no Brasil, e mostrou que o país ainda apresenta taxas de mortalidade extremamente elevadas, apesar dos avanços nas práticas terapêuticas. A candidemia é a infecção fúngica invasiva hospitalar mais prevalente em todo o mundo, com incidência variando de 0,33 a 6,51 episódios a cada mil internações.

A análise comparativa teve apoio da FAPESP e foi feita com dados de 11 hospitais públicos e privados, num total de 616 casos, sendo 369 do primeiro período e 247 do intervalo mais recente. O uso de antifúngicos da classe de equinocandinas foi intensificado – passou de 13% para 41%, mas não houve reflexo nos índices de mortalidade, alertando para a necessidade de observar outros fatores.

“Temos um problema de diagnóstico tardio, que ainda depende exclusivamente da hemocultura e requer tempo para crescimento e identificação do fungo em laboratório. A sensibilidade desse método é baixa, até 50% de pacientes podem ter exame negativo na presença da doença. O tempo é crucial para a sobrevida do paciente e precisamos encurtá-lo, investindo em melhores técnicas não dependentes de cultura, incluindo diagnóstico molecular e por biomarcadores”, aponta Caroline Agnelli, primeira autora do artigo e doutoranda em doenças infecciosas e parasitárias na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Além disso, chama a atenção no trabalho o índice de pessoas que não chegam a receber tratamento. “De cada dez indivíduos, dois nem sequer são tratados por falta de recurso diagnóstico e pelo menos metade dos que recebem tratamento morre. Para ter uma ideia, dados coletados por colegas de Porto Alegre em mais de 120 centros médicos da América Latina demostram que só um em cada dez hospitais tem recurso suficiente para fazer uma boa abordagem diagnóstica em micologia médica – e isso vale para várias infecções fúngicas”, alerta o professor da Unifesp Arnaldo Colombo.

Para os pesquisadores, o estudo mostra que, apesar do amplo conhecimento que se tem sobre a história natural de infecções invasivas por Candida – ao contrário de outros fungos negligenciados –, não houve uma redução de mortalidade. “O prognóstico do paciente é multifatorial, mas temos conhecimento do que pode fazer a diferença. São medidas como início precoce de antifúngico combinado com o controle oportuno e eficaz da fonte de infecção, incluindo a remoção de cateter venoso central”, explica Agnelli.

A candidemia é uma complicação que geralmente aparece em pacientes críticos, hospitalizados por longos períodos, principalmente em unidades de terapia intensiva, com uso de antibióticos de amplo espectro, corticoides, ou que têm alguma demanda de processo invasivo, como diálise ou procedimento cirúrgico, especialmente abdominal. A utilização de cateter venoso central é um dos fatores de risco, mas a proporção de remoção precoce nos casos de candidemia permaneceu abaixo de 50% ao longo dos anos estudados. “Ainda que a decisão da retirada deva ser individualizada por motivos de segurança, gravidade da doença ou condições clínicas, é uma medida que deve ser priorizada sempre que possível para melhor prognóstico”, afirmam os pesquisadores.

Vale ressaltar que o fungo que causa a candidemia hospitalar é o mesmo que já coloniza naturalmente o trato gastrointestinal – bastante conhecido pelas mulheres por causar candidíase vaginal. “É inofensivo quando se está com boa imunidade e fora do contexto de uma hospitalização. Mas em ambiente hospitalar há fatores que promovem a transição de colonização para doença invasiva, como uso de antibióticos, por exemplo, que favorecem a disbiose, reduzindo a microbiota bacteriana e aumentando a população de Candida, assim como a realização de procedimentos médicos invasivos para tratamento do paciente. Diante de condições associadas à baixa imunidade e ao ambiente hospitalar, o cenário vivendo com o inimigo de forma saudável se transforma em vivendo com o inimigo de forma crítica”, explica Colombo.

Mudança de perfil e outros estudos

As taxas de mortalidade foram inaceitavelmente altas e permaneceram inalteradas ao longo dos anos do estudo, apesar do uso mais amplo de equinocandinas. Para os autores, isso provavelmente está associado à mudança na população de risco e estratégias que podem ser melhoradas. “Houve mudança no perfil. Percebemos que a idade não aumentou, mas a qualidade do envelhecimento dos pacientes é diferente. Ultimamente, têm mais comorbidades, chegam já com histórico de mais internações anteriores”, pondera Agnelli.

Os pacientes de ambos os períodos tinham idade mediana semelhante (62 e 65 anos) e não houve diferença significativa na gravidade clínica inicial. Porém, nos anos mais recentes, dobrou o número dos que apresentavam mais de três comorbidades (29% contra 16% em 2010) e em processo de diálise (15% contra 8% em 2010). Os pacientes do período mais recente apresentaram candidemia mais rapidamente e 40% já tinham histórico de outras internações (contra 21% em 2010).

“Temos uma taxa de mortalidade com 14 dias da infecção em torno de 35%, e em torno de metade dos casos em 30 dias. É muito elevado e, há alguns anos, nos perguntamos a razão, comparando com as taxas de outros países”, destaca Colombo, citando um estudo feito em parceria com a Espanha. Os pacientes europeus apresentaram taxas de mortalidade significativamente menores, apesar de serem mais velhos do que os brasileiros. “Além do diagnóstico, ficou claro que eles retiram o cateter mais rapidamente, com controle de foco eficaz, e entram com o antifúngico correto também mais cedo. Ou seja, todo o protocolo de sepse bacteriana tão divulgado nas unidades de terapia intensiva é muitas vezes negligenciado quando se trata de infecção por fungos no Brasil. O tempo para o início do manejo terapêutico é crucial para o prognóstico do paciente e o estudo permite ver isso muito bem”, completa Agnelli.

Há alguns anos, Colombo e seu grupo se dedicam ao estudo de epidemiologia, boas práticas terapêuticas e emergência de patógenos resistentes. Agora, o pesquisador vai coordenar um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP com o propósito de estudar a questão da resistência antimicrobiana. São mais de 30 pesquisadores envolvidos e dez centros de pesquisa de vários países, além de parceiros na gestão pública e do setor privado (leia mais em: agencia.fapesp.br/41018).

Metodologia e desafios

Os dados do estudo publicado no Jornal of Fungi foram coletados a partir da confirmação da infecção por Candida por meio de um protocolo de vigilância laboratorial de rotina, incluindo dados demográficos, condições médicas, fatores de risco e condições associadas à candidemia, como uso de antibióticos de amplo espectro, quimioterapia, corticosteroides, cirurgia prévia, cirurgia abdominal, cateter venoso central, nutrição parenteral, identificação das espécies de cândida, gravidade clínica, antifúngicos prescritos, tempo para início do tratamento, tempo para remoção do cateter e mortalidade em 14 e 30 dias da hemocultura positiva. A espécie era analisada pelo laboratório local e o material enviado ao Laboratório Especial de Micologia (Lemi), da Unifesp, para confirmação.

Esse trabalho de vigilância epidemiológica é realizado há muito tempo e com a colaboração dos hospitais, o que possibilita semelhança entre as fichas clínicas. “Mas não é simples colher esses dados com acurácia. Há todo um processo de acompanhamento e auditoria, uma análise muito criteriosa para fundir bancos de dados e fazer comparações corretas”, explica Colombo. “A tecnologia ainda não evoluiu tanto para facilitar a fusão de duas bases. É preciso constantemente revisar os critérios, alinhando tudo para fazer com que as populações, as amostras e as variáveis sejam comparáveis”, destaca Agnelli.

Segundo a pesquisadora, as micoses sistêmicas não integram a lista nacional de doenças de notificação compulsória no Brasil. Elas também não são objeto de vigilância epidemiológica de rotina e, por isso, não existem dados epidemiológicos da ocorrência, magnitude e transcendência da candidíase sistêmica em nível nacional. No Brasil, a taxa de incidência chega a 2,49 casos de candidemia por mil admissões nos hospitais públicos terciários, o que corresponde a uma taxa de duas a quinze vezes maior do que as relatadas nos Estados Unidos e em países da Europa.

O artigo Prognostic trends and current challenges in candidemia: A comparative analysis of two multicenter cohorts within the past decade pode ser lido em: www.mdpi.com/2309-608X/9/4/468.