Estudo de proteínas secretadas por células tumorais indica novos caminhos para o combate ao câncer
Janaína Simões | Agência FAPESP – Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) tenta descobrir por que em determinadas situações proteínas que deveriam ser encontradas no núcleo de células tumorais acabam indo parar em locais diferentes, como o citoplasma (região entre o núcleo e a membrana celular) ou até mesmo fora da célula. Segundo os cientistas, esse fenômeno não esperado pode indicar um padrão relevante para fins de diagnóstico e prognóstico de diversos tipos de câncer.
Resultados obtidos até o momento foram divulgados em artigo de capa na revista científica Traffic. No estudo, os pesquisadores Juliana A. de Morais e André Zelanis, ambos do Laboratório de Proteômica Funcional do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT-Unifesp), reanalisaram dados públicos depositados em repositórios internacionais por cientistas de diversos países. As informações usadas na pesquisa são referentes ao chamado “secretoma”, que é o conjunto de proteínas secretadas por uma célula animal ou vegetal.
Como explicam os autores, uma célula sadia tem um repertório de proteínas que precisa ficar dentro dela para a realização de funções básicas. Um exemplo são as proteínas direcionadas ao núcleo celular, como as histonas, nas quais o DNA se enrola para formar o cromossomo. “As proteínas são produzidas e endereçadas para pontos diferentes dentro da célula. E existe uma fração delas que é enviada para fora da célula, para exercer alguma função em seu entorno, como formar uma matriz extracelular”, explica Zelanis.
Segundo o pesquisador, a informação sobre o caminho a ser seguido está na própria estrutura da molécula. “As proteínas seguem uma rota definida de secreção, que chamamos de rota canônica. Proteínas que têm como destino ir para fora das células, por exemplo, têm sinais que indicam a ela essa rota de secreção”, explica.
No caso das células tumorais, costuma haver uma certa instabilidade genômica e um acúmulo de mutações em genes que regulam o crescimento e a proliferação celular. Vários processos metabólicos podem ficar desregulados, entre eles o da secreção de proteínas, explicam os cientistas.
Dados descartados
No cotidiano dos laboratórios, é relativamente comum os pesquisadores acharem algumas proteínas em locais não esperados. Quando trabalham com culturas in vitro, costumam separar a célula do conjunto de moléculas por ela secretado ao fazer as análises – daí a existência de banco de dados com informações específicas sobre os secretomas.
A principal hipótese para explicar a secreção de proteínas por rotas não canônicas se relacionava ao possível rompimento da célula durante a coleta. Ou seja, acreditava-se que as proteínas “fora de lugar” teriam contaminado a área em que não deveriam estar durante o manuseio da amostra.
“Os pesquisadores sempre olhavam para esses dados como algo decorrente do processo de coleta e os descartavam, já que não eram de interesse para os seus estudos”, conta. “A originalidade da nossa pesquisa vem justamente do fato de que resolvemos olhar de outra maneira para essas proteínas que não foram secretadas normalmente”, destaca.
A primeira etapa do estudo foi capturar, em repositórios públicos, os dados brutos relacionados a células de tumores de mama, cólon, melanoma, ovário e sarcoma de Ewing (câncer raro que acomete principalmente crianças, adolescentes e adultos jovens e ocorre, em geral, nos ossos e nas partes moles que envolvem os ossos). Com a análise proteômica, que faz uma avaliação em larga escala do conjunto de proteínas, foi gerada uma lista de moléculas de interesse. Dessa lista, os pesquisadores identificaram aquelas que tinham seguido a rota canônica, eliminando-as das análises seguintes.
Ao analisar o outro grupo, descobriram um padrão comum. Algumas proteínas tinham como destino o núcleo da célula, mas percorreram uma rota não canônica e foram secretadas de “forma indevida”. Esse padrão foi observado em todos os tipos de células tumorais analisadas.
Os autores também utilizaram o Atlas Humano de Proteínas, que disponibiliza cortes histológicos para praticamente todas as proteínas que constam nos bancos de dados. Os cortes são um procedimento em que fragmentos da proteína são fatiados para serem observados em microscópio.
“No Atlas, pudemos olhar, por exemplo, uma célula normal da pele e uma de um câncer de pele e verificar onde ficam as proteínas dentro dessas células. Algumas das proteínas que a gente achou, na condição de tumor, ficam de fato marcadas no citoplasma das células [em vez de estarem no núcleo, onde seria o esperado]”, conta.
De um grupo inicial de 6.092 proteínas identificadas, 38% adotaram rotas não canônicas, ou seja, foram secretadas para lugares diferentes do previsto. Dessas, 19 estão presentes em todos os tipos de células de tumor analisadas e foram observadas no citoplasma, apesar de terem funções associadas ao núcleo das células. De acordo com Zelanis, por terem encontrado esse padrão em trabalhos de pesquisadores do mundo todo, incluindo o Brasil, a possibilidade de os resultados terem sido influenciados pelo método que cada pesquisador e laboratório usou para obter as proteínas é muito baixa.
“Depois, fomos olhar se histologicamente existia algum registro mostrando que essas proteínas, na situação de tumor, estavam em localização diferente, o que foi observado em parte das 19 proteínas. Esta é outra observação independente que suporta nossos resultados”, afirma.
Na avaliação de Zelanis, ainda é cedo para saber se as 19 proteínas poderiam ser indicadores biológicos para diagnóstico ou tratamento dos tumores. “Só fizemos análises usando a bioinformática. Precisamos fazer muitos outros estudos para averiguar isso”, afirma. Os dados obtidos não permitem aos pesquisadores explicar por que as proteínas adotaram a rota não canônica e foram secretadas para o citoplasma, nem afirmar de que forma o processo está relacionado com o tumor, por exemplo.
Mas os pesquisadores da Unifesp já planejam os próximos passos para buscar essas respostas: selecionar as proteínas e investigar seu papel biológico nos diferentes tipos de câncer, partindo para estudos funcionais. Eles devem estudar, inicialmente, o melanoma.
“Nosso estudo analisou até agora proteínas de bancos de dados de secretomas de células em cultura. Apenas uma das amostras era proveniente de célula de paciente. Agora queremos estudar amostras de plasma de pacientes com melanoma para achar essas proteínas, buscar marcadores”, detalha. “Precisamos fazer a validação de tudo o que descobrimos até agora em amostras de pacientes com e sem câncer para podermos comparar e ver se é um processo que ocorre apenas nas células tumorais.”
Até o momento, o trabalho recebeu apoio da FAPESP por meio de dois projetos (19/07282-8 e 14/06579-3).
A íntegra do artigo Bioinformatic reanalysis of public proteomics data reveals that nuclear proteins are recurrent in cancer secretomes pode ser lida em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/tra.12827.