Pesquisa revela mecanismo envolvido na transmissão de doença genética de mãe para filhos
Luciana Constantino | Agência FAPESP – Pesquisa publicada na revista Science Advances descreve um mecanismo que ajuda a entender a transmissão de mãe para filhos de alguns tipos de doença genética, as mitocondriais. O resultado permite a busca de novas estratégias para evitar que futuras gerações sejam afetadas, já que os tratamentos atuais são apenas paliativos para melhorar a qualidade de vida do paciente ou retardar a progressão dos sintomas.
As mitocôndrias são organelas responsáveis pelo fornecimento de energia para as células. Têm um genoma próprio, o DNA mitocondrial (mtDNA), com 16.569 nucleotídeos, sujeitos a mutações. Algumas dessas mudanças podem levar ao desenvolvimento de doenças mitocondriais.
Diferentemente do DNA nuclear, em que os filhos herdam metade do pai e o restante da mãe, no caso do mtDNA toda a transmissão é feita pela mulher, que já nasce com todos os óvulos formados no ovário. A partir da puberdade, uma fração desses óvulos é, de modo cíclico, selecionada para se desenvolver até a ovulação e, eventualmente, chegar a ser fecundado.
O estudo mostra, pela primeira vez, que é na fase final de formação dos óvulos que ocorre o acúmulo de DNA mitocondrial mutante. Os experimentos foram realizados em camundongos. De acordo com o trabalho, à medida que os óvulos se desenvolvem, aumenta a porcentagem de moléculas mutantes, que podem prejudicar o funcionamento da organela e são responsáveis pelo aparecimento das doenças.
Os pesquisadores detectaram que o nível de mutação (entre 0% e 100% do mtDNA) chega, no máximo, a 90%, sendo o restante de mtDNAs selvagem (sem a modificação). A descoberta desse “teto” é importante para entender como ocorre a transmissão do DNA mitocondrial mutante, responsável pelas doenças.
A coexistência em uma mesma célula de mtDNAs mutantes e selvagens (mistura denominada de heteroplasmia) pode mascarar os efeitos do DNA mitocondrial mutante, favorecendo que seja passado de uma geração para outra.
“Até então não se sabia haver esse acúmulo, como apontamos agora no trabalho. Uma vez entendido onde e como ocorre, é possível pensar em estratégias para evitá-lo”, diz Marcos Roberto Chiaratti, professor do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Juntamente com a aluna de pós-graduação Carolina Habermann Macabelli, Chiaratti é um dos autores do estudo, que recebeu apoio da FAPESP por meio de dois projetos (17/04372-0 e 16/07868-4) e do Newton Advanced Fellowship.
“O tratamento mais eficaz é identificar a mutação na mãe para evitar a herança para os filhos. Nossa linha de pesquisa se insere nesse sentido: entender quais mutações são transmitidas e o mecanismo envolvido. O Brasil ainda engatinha na área de doença mitocondrial”, afirma Chiaratti, colaborador do grupo de Patrick Francis Chinnery, professor da Universidade de Cambridge e autor correspondente do artigo.
Os sintomas das doenças mitocondriais variam de acordo com a mutação, quantidade de células comprometidas e o tecido acometido. Entre os mais comuns estão fraqueza e perda de coordenação muscular; alterações cognitivas e degeneração do cérebro, além de problemas renais e até cardíacos.
As doenças mitocondriais, consideradas como distúrbios metabólicos hereditários, podem aparecer em qualquer momento da vida, no entanto, quanto mais cedo for a manifestação da mutação, maior a probabilidade de gravidade dos sintomas e o grau de letalidade. O diagnóstico ainda é difícil, normalmente feito por meio de exame genético e molecular.
Tanto que ainda há poucas informações sobre a incidência de casos no mundo. Estima-se que a prevalência mínima de doenças causadas por mutações no DNA mitocondrial seja de uma a cada 5 mil pessoas. No entanto, a frequência de mutações patogênicas no mtDNA é estimada em uma a cada 200 pessoas. Cerca de 80% dos adultos com mutações heteroplásmicas patogênicas apresentam a do tipo m.3243A>G, que causa encefalopatia com acidose e episódios semelhantes ao acidente vascular cerebral (MELAS).
Experimento
O grupo de cientistas estudou camundongos geneticamente modificados com dois tipos de genoma mitocondrial (heteroplásmicos): o selvagem, que não causa doença, e o com mutação patogênica m.5024C>-T – similar à mutação patogênica m.5650G>A, presente em humanos. Foram analisados 1.167 pares de mãe-filhote.
Observou-se uma forte tendência de fêmeas com baixos níveis de m.5024C>-T transmitirem níveis superiores dessa mutação para a prole. Porém, em fêmeas com altos níveis da mutação, essa tendência é inversa, indicando uma seleção purificadora contra níveis elevados (acima de 90%) da mutação.
A análise em óvulos de camundongos (oócitos) em diferentes estágios de desenvolvimento mostrou o aumento do nível da mutação m.5024C>-T em relação ao de DNA mitocondrial do tipo selvagem. Como o óvulo não sofre divisão celular até a ovulação, esse achado indica que o DNA mitocondrial mutante é preferencialmente replicado independentemente do ciclo celular.
Os pesquisadores testaram vários modelos matemáticos e o que melhor explicou esse fenômeno indicou haver uma vantagem replicativa em favor do DNA mitocondrial mutante, além de uma seleção purificadora que impede que a mutação alcance níveis elevados.
Primeiro houve a avaliação dos níveis de heteroplasmia em 42 camundongos fêmeas e seus 1.167 descendentes. Em seguida, foram medidos os níveis de DNA mitocondrial mutante em óvulos em diferentes estágios do desenvolvimento e comparados com os níveis da mutação em diferentes órgãos e idades.
Foram fornecidas evidências de que os achados se aplicam a camundongos portadores de outra mutação patogênica (m.3875delC tRNA) e a humanos, como indicado pela análise de 236 pares de mãe-criança.
Isso demonstrou seleção positiva quando a mutação foi transmitida de mães com baixos níveis de heteroplasmia e seleção purificadora contra altos níveis de heteroplasmia (acima de 90%). Os pesquisadores concluíram que a seleção positiva decorre de uma preferência pela replicação da molécula mutante em detrimento da selvagem.
“Essa replicação preferencial possibilitou que o nível de mutação atingisse o máximo de 90%. Acima disso, o efeito negativo da mutação é muito grande e outros mecanismos parecem atuar no óvulo, impedindo que a mutação atinja 100%”, explica Chiaratti.
O professor pretende em breve viajar para a Inglaterra para desenvolver novos experimentos. Um dos caminhos será avançar nos estudos para a fase de tratamento farmacológico, visando combater os níveis de mutação do DNA mitocondrial para evitar a transmissão de doenças.
“Ao entender como o acúmulo de mutação que levará à doença mitocondrial ocorre durante a fase final de formação do óvulo, cria-se uma perspectiva de produzir óvulos in vitro e fazer manipulações, sejam farmacológicas ou genéticas, para diminuir esses níveis. Com isso, é possível reduzir a probabilidade de o filho desenvolver a doença”, afirma.
O artigo Mitochondrial DNA heteroplasmy is modulated during oocyte development propagating mutation transmission pode ser lido em www.science.org/doi/10.1126/sciadv.abi5657.